segunda-feira, março 15, 2010

Pé em brasa

Meu pé está vivo! Irradiando energia. Quase nuclear. Quanta inquietação. Quanta vibração. Juro achar que minhas moléculas estão se desprendendo. Como alguém pode se sentir tão inquieto estando completamente inerte? Que diabos quero fazer afinal? Abro a geladeira, acendo a luz, desmonto o carro, abro a geladeira, rego as plantas, leio livros que já decorei, abro a geladeira, deito, levanto, está frio, está quente, está chato. Que inferno! Como posso estar tão exaltado se acabei de levantar da cama? Que inferno! Ainda nem falei com alguém e já me rasgo de mau humor. Bom dia? Bom para quem? Mal sai da cama e só penso que já quero dormir de novo. E que sensação é essa aqui dentro? Nem estava triste e as pupilas já boiam em lágrimas. Meu pé está mexendo. Minha perna está vibrando. Meu coração está  bradando. Cada parte, cada pedacinho, cada pêlo do meu corpo resolveu se manifestar. Todos querendo atenção ao mesmo tempo. Um misto de ladainha e feira livre. Como posso estar prestando atenção em cada pedacinho de meu corpo e ainda estar digitando, e ouvindo uma musica péssima, e vendo um pombo imundo pela janela, e brigando com o sobrinho que teima com a baba que grita, e pensando na namorada, e entediado por saber que teria de ir ao trabalho, lembrando que não paguei o cartão, lembrando que querem diminuir meu salário, e que meu trabalho é medíocre, e que tenho que estudar para outro concurso, e sentindo o cheiro do café, e ouvindo o “toc toc” de martelo do pedreiro? Tudo isso ao mesmo tempo. Não o mesmo tempo (um espaço determinado de tempo), tudo ao mesmo tempo, mesmo! Mesmo segundo, mesmo instante, instantaneamente. Como priorizar alguma coisa se todas berram com a mesma determinação? Como me deitar com a mulher amada se nem consigo deixar de ouvir o buzinar de um carro lá na outra rua? Como explicar se em trinta anos não entendi? Como esperar que alguém entenda, se quero mesmo é desistir? E como é inútil tapar os ouvido, se descobri que ouço com a pele. E como é inútil aumentar o som, se descobri que ouço em várias frequências. E como é inútil fechar os olhos, se descobri que vejo com os ouvido. Tudo no plural. Os sons, as cores, as luzes, as vozes, as dimensões, as dúvidas, os sentimentos  e sentidos. Só eu continuo singular. E o pé saltando cada vez mais alto. Como se pisasse em brasas.

Pintura: Edvard Munch
"O Grito"

2 comentários:

  1. Ô lôco! Não poderias escolher gravura melhor para ilustrar tamanha confusão interna. Pelo jeito não cabe silêncio nesse bafafá. O seu relato é como uma imagem, muito nítido. Parabéns!
    Um grande abç.
    Ginho

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